As batidas policiais que abalaram
Império da Cannabis na Europa

Por Rolando García

Lisboa, outubro de 2025. A sala ficou em silêncio quando o Dr. Vasco Bettencourt, diretor da Unidade de Licenciamento do IFRMED, subiu ao palco.

Ele sabia o que o aguardava: um salão lotado de produtores, exportadores e operadores farmacêuticos ansiosos por respostas após meses de batidas policiais, licenças suspensas e atrasos na emissão de alvarás de exportação.

“Estamos aprimorando o sistema”, disse ele, fazendo pausas entre as frases como se estivesse escolhendo palavras que não provocassem mais frustração. “São problemas de crescimento.”

O comentário, feito com a intenção de tranquilizar, provocou uma mistura de murmúrios e sobrancelhas arqueadas. Para as empresas que lotavam os assentos no Conferência Portuguesa sobre Cannabis Medicinal (PTMC), dores de crescimento representam uma ameaça à era de ouro de Portugal como porta de entrada europeia para o cultivo de cannabis medicinal após a colheita.

Durante quase uma década, Portugal ocupou o centro do mapa da cannabis na Europa. Flores provenientes do Canadá, Colômbia, África do Sul e Tailândia chegavam para serem testadas, reembaladas, descontaminadas e certificadas segundo as Boas Práticas de Fabricação da Europa (EU-GMP). De lá, seguiam para a Alemanha e o Reino Unido, os maiores mercados de cannabis medicinal da região.

O modelo funcionou até agora, mas está sendo ameaçado pela recente legalização na Alemanha e pelas consequências de uma grande operação judicial que abalou o setor no ano passado, quando a polícia descobriu uma rede de produtores licenciados que distribuíam produtos para mercados ilícitos em Portugal, na África e em outros lugares.

Na conferência, Bettencourt afirmou que o INFARMED, a agência portuguesa responsável pela regulamentação e controlo de todos os produtos medicinais – incluindo a cannabis –, está a implementar um novo software para registar e monitorizar as importações e exportações de cannabis através do Sistema Nacional de Controlo de Drogas (NDS) das Nações Unidas. Acrescentou que os próximos passos da agência se concentrarão na redução dos atrasos na obtenção de licenças, através da introdução de procedimentos de qualificação atualizados e de ferramentas digitais mais eficazes para a supervisão regulamentar.

Ele também compartilhou que, apesar da turbulência, os volumes de exportação de Portugal ainda ultrapassaram os níveis de 2024 em agosto de 2025, de acordo com dados apresentados pela INFARMED na mesma conferência. Curiosamente, não há como saber com precisão qual parcela desse volume veio do exterior para ser "lavada segundo as Boas Práticas de Fabricação" (analisaremos esse conceito controverso mais a fundo) e qual foi cultivada em Portugal.

Com empresas estrangeiras a correrem para certificar as suas próprias instalações GMP, permanece a questão: conseguirá Portugal manter a sua posição como intermediário na Europa, ou a situação já se alterou?

Os ataques que mudaram as regras

Em 20 de maio de 2025, a Polícia Judiciária de Portugal lançou Operação Erva Daninha, executando 64 mandados de busca e apreensão e realizando diversas prisões sob suspeita de desvio internacional de mercadorias. Uma segunda rodada, Operação Ortiga, Em julho, ocorreu a apreensão de aproximadamente duas toneladas métricas e a detenção de cidadãos estrangeiros., relatado CannaReporter.

Os casos permanecem sob análise. segredo de Justiça, A regra do sigilo judicial em Portugal. Mas o efeito já se fez sentir em toda a indústria.

Como consequência, o INFARMED passou a ser alvo de críticas políticas por ter aprovado documentos relacionados a empresas agora sob investigação. Sua resposta foi endurecer as medidas de fiscalização. regras de importação/exportação e implementar requisitos de diligência prévia mais rigorosos para todas as remessas de saída. O resultado é um sistema aparentemente mais limpo, porém mais lento.

Desde junho, as empresas afirmam que as aprovações, que antes levavam cerca de 30 dias, agora ultrapassam os 70 dias.

Agora, as solicitações devem incluir certificados de análise ampliados, credenciais GMP verificadas para compradores e intermediários e códigos de rastreabilidade digitalizados para cada lote.

Por que os números não funcionam mais?

Arthur de Cordova, CEO da Ziel, empresa sediada na Califórnia, acompanhou de perto essa mudança. Sua empresa fornece sistemas de controle microbiano utilizados em instalações com certificação GMP em todo o mundo, incluindo Portugal e, cada vez mais, na Colômbia e na Tailândia.

A empresa comercializa sistemas de radiação não ionizante utilizados para o controle microbiano — algo importante porque o mercado alemão restringe métodos ionizantes como raios X ou irradiação gama, que exigem um longo processo de registro de cepas.

“Estive em Portugal há uma semana”, disse ele. Tempos Altos. “Durante um ano e meio, eles tinham um canal de distribuição muito bem estabelecido. Se você estivesse na Colômbia ou na África do Sul e precisasse de acesso à Alemanha, enviaria o produto para Portugal. Cinco ou seis fabricantes terceirizados faziam isso, e eles tinham um negócio próspero, fornecendo uma solução para produtores que seguiam as Boas Práticas Agrícolas e de Coleta (GACP) em todo o mundo.”

Essa “solução” está agora sob pressão em duas frentes.

Primeiro, a questão econômica. “Se um atacadista alemão paga cerca de três euros por grama”, explicou de Cordova, “o intermediário português fica com uma margem de 60 cêntimos — cerca de 20%. E se for necessária a descontaminação, pode-se acrescentar mais 30 ou 40 cêntimos.”

Para os grandes produtores que enviam toneladas métricas por ano, essas margens são difíceis de engolir. "É simplesmente a economia que está impulsionando a mudança", disse ele.

Em segundo lugar, as consequências políticas dos escândalos. "Agora a INFARMED está sob os holofotes. Eles não podem se dar ao luxo de cometer outro erro, então estão revisando tudo minuciosamente."“

Se você for um produtor no Canadá ou na Colômbia, observou ele, isso significa que seu produto fica parado por semanas enquanto você espera pelo pagamento. “Esse atraso custa dinheiro de verdade”, observa De Cordova.

Em vez de esperar na fila de Lisboa, muitos produtores internacionais estão começando a construir suas próprias instalações de pós-colheita que atendem aos padrões de Boas Práticas de Fabricação (BPF) da UE.

“Não é fácil e exige tempo e dinheiro”, disse de Cordova. “É melhor planejar com pelo menos um ano e meio de antecedência a partir do início do processo — contratar um consultor, modernizar as operações, passar por auditorias, corrigir as irregularidades e, talvez, passar por novas auditorias.”

Mas se uma empresa envia milhares de quilos por ano, a economia se acumula rapidamente. "É uma questão de 60 centavos a um euro que você economiza por não passar por Portugal, multiplicado pelo volume que você envia por Portugal", explicou ele.

De Cordova afirmou que a tendência não é hipotética: "Posso citar dez empresas que estão fazendo isso agora mesmo."“

A Colômbia, a Tailândia e outros países menores da UE estão caminhando rumo à integração vertical completa, instalando tecnologia de descontaminação microbiana no local e obtendo certificação de acordo com os padrões da UE.

Mas, apesar da turbulência, Portugal continua sendo o principal exportador da Europa.

Segundo dados do INFARMED apresentados na PTMC Lisboa 2025, o país já havia exportado mais cannabis até agosto de 2025 do que durante todo o ano de 2024, quando Portugal enviou mais de 20 toneladas de flor medicinal, ficando atrás apenas do Canadá no mundo.

O debate sobre a "lavagem das Boas Práticas de Fabricação"

Para alguns mercados, o objetivo pode não ser apenas economizar dinheiro, mas preservar a qualidade do produto final.

No setor, existe um termo que tem sido frequentemente usado para descrever o que Portugal oferece ao polo europeu da cannabis: “Lavagem GMP.”

A expressão é usada para acusar os processadores portugueses de receberem flores de cannabis de qualidade inferior, sem certificação GMP, submetê-las a processos de remediação e vendê-las como cannabis de grau farmacêutico.

De Cordova rejeita essa interpretação. "É uma palavra ruim e um nome ruim", disse ele. "Não é justo com as pessoas que estão fazendo um bom trabalho. Se você visitar uma instalação com Boas Práticas de Fabricação (BPF) em Portugal que presta esse serviço, os padrões de operação são equivalentes aos de uma fábrica farmacêutica."“

O fato é que, tecnicamente, esses processadores executam etapas validadas — descontaminação microbiana, corte, testes, embalagem — seguindo POPs (Procedimentos Operacionais Padrão) documentados e revisados pelos órgãos reguladores.

O processo está em conformidade, mas não é transformador. É por isso que as práticas de certificação dos botões agregam valor, mas nunca serão capazes de melhorar práticas agronômicas inadequadas, cura deficiente ou a integridade dos terpenos.

Como disse de Cordova: “Sempre haverá alguma pequena mudança. A equipe de qualidade precisa equilibrar a redução microbiana e a preservação da qualidade.”

Ele observa ainda que a poda muitas vezes causa mais danos físicos à flor do que a descontaminação. "Se você quer falar sobre danos aos tricomas", disse ele, "o dano é ainda maior quando se passa a flor seca por uma máquina de poda automática."“

Regulamentação, Política e Paralisia

Por trás dos números reside o enigma burocrático de Portugal.

Jornalistas de destaque Laura Ramos de CannaReporter Apontou para problemas estruturais mais profundos: seis ministérios diferentes compartilham a supervisão da indústria da cannabis, da saúde à agricultura e à polícia, muitas vezes sem coordenação. Grupos de pacientes e associações do setor permanecem fragmentados, deixando o setor sem uma voz forte de lobby.

Esse vácuo tem consequências políticas.

Na opinião dela, o famoso Portugal modelo de descriminalização, A legislação, pioneira em 2001, não se traduziu em uma estrutura coerente para a cannabis. Os cidadãos podem possuir pequenas quantidades, mas o cultivo ou a venda continuam ilegais, levando ao que ela chama de "problema". “Descriminalização sem legalização.”

A contradição alimenta a confusão. Mesmo com Portugal exportando dezenas de toneladas de cannabis medicinal todos os anos, O acesso doméstico para pacientes continua limitado., E a polícia ainda efetua prisões por pequenas plantações domésticas.

Será que Portugal conseguirá manter a vantagem?

Segundo todos os critérios oficiais, Portugal continua sendo um dos maiores exportadores mundiais de cannabis. Mas o estrutura Essa liderança está mudando.

As batidas policiais e os consequentes gargalos tornaram o processo de fabricação de produtos de Boas Práticas de Fabricação (BPF) no país mais lento e caro. Para os produtores globais, Boas Práticas de Fabricação (BPF) internas Agora, pode parecer um investimento racional a longo prazo, em vez de uma opção exótica. O próximo capítulo de Portugal depende da execução.

Por enquanto, o país continuará sendo o centro de negócios da cannabis medicinal, o que lhe conferiu um papel de liderança na economia europeia da cannabis. Mas a atenção está se voltando para os cultivadores e países dispostos a obter as certificações GACP e GMP. semente à venda. Como De Cordova afirmou de forma simples em nossa entrevista, dadas as condições atuais, “O telefone não vai tocar tanto em Portugal.”